Este texto é sobre o Trabalho e tem como motivação específica a querela atual sobre a atividade dos “estafetas em plataformas digitais” e, mais especificamente, a categorização ou qualificação jurídica da mesma inserida no contexto da regulação das relações laborais na economia das plataformas digitais, em debate na União Europeia e, também, em Portugal.

A preocupação que se evidencia na argumentação adrede já expendida circunscreve-se geralmente ao “combate ao falso trabalho independente”, ao “trabalho precário” e ao “trabalho sem proteção social” e, assim, é apenas o trabalho assalariado, baseado no contrato de trabalho, o que se põe em causa. Trata-se, porém, de uma visão muito estreita do que é o Trabalho – e do que, sobre ele, o futuro já deixa adivinhar. Há trabalho para além do emprego!

Se o Trabalho está, nas sociedades ocidentais, e desde a Revolução Industrial, intimamente ligado ao emprego é, na verdade, algo muito mais vasto e profundo tal como os estudos antropológicos o evidenciam. E tem muitos rostos, não servindo a todos o mesmo tratamento jurídico. Certo. O trabalho assalariado, assente no contrato de trabalho, tornou-se tão vulgar e teve um efeito tamanho na alavancagem do bem-estar social, sobretudo a partir dos finais da II Guerra Mundial, que é ainda tido, por muitos, como o único ou essencial modo de trabalhar. Há, porém, quem não queira, agora, obedecer juridicamente a um patrão e rejeite a subordinação às suas ordens, ainda que tendo que pagar, porventura, o preço da dependência económica que isso traz e o de outros condicionalismos relativos ao modo de prestação de atividade. Será, designadamente, o caso dos estafetas em plataformas digitais, ou o dos trabalhadores “uberizados”, que, observados na sua constante – e recordando o poema de José Carlos Ary dos Santos, que Carlos do Carmo cantou, -me recortam no espírito os “bandos de pardais à solta” que, “como índios”, serão os “putos deste povo a aprenderem a ser homens”.

Segundo o autodesignado “Movimento dos Estafetas”, a maioria desses trabalhadores pretenderão continuar a ser tidos como “freelancers” (independentes), sendo que, porém, no debate, ora em curso, o ponto está na insistência em considerá-los como trabalhadores por conta de outrem, juridicamente subordinados no âmbito de um contrato de trabalho. A questão tem aspetos de grande complexidade mas tem que ser enfrentada à luz deste novo tempo em que à volta do Trabalho se vive, outra vez, incerteza e angústia, tal como em outros mundos das nossas vidas, em que a desconstrução de anteriores categorias do pensamento se apresenta como inevitável.

A forte expansão das novas tecnologias é causa maior de fundas mudanças no mundo do trabalho. E mais o será no futuro, ainda que não sendo a única pois a pandemia também ocupa, aí, um lugar destacado. Há, com efeito, sinais que já não podem ser mais ignorados, também no que se refere ao Trabalho, e que assumem formas e designações novas: “Grande demissão” (The big quit) e “demissão silenciosa” (Quiet quitting) expressando quer o abandono voluntário de empregos por trabalhadores insatisfeitos com as condições ou modo de prestação de trabalho ou a ausência de sentido para o que estão obrigados a cumprir, quer a recusa de prestar trabalho sem limites em empregos que exigem crescentemente grandes sacrifícios da sua vida privada ou da sua saúde. Aqui o trabalho autónomo ou independente é uma alternativa cada vez mais procurada pelo mundo fora.

A problemática do emprego, terá, pois, que ser revisitada sendo que a segurança dos trabalhadores não poderá repousar, unicamente, na relação de emprego “clássica”. A questão crucial será, então, a de saber qual a extensão e quais os limites possíveis do âmbito da aplicação do regime do trabalho assalariado face à dinâmica e à força que marcam diversos interesses sociais, económicos e financeiros, mas também pessoais. Qual deverá ser a posição destes novos
trabalhadores no processo de produção?

A ideia de Trabalho, que o relegou contratualmente, tantaz vezes, para a categoria de “mercadoria” ou o vê como mero “fator de produção” desprezando a sua dimensão de realização pessoal e de coesão social, não é mais o caminho, sendo inegável que várias categorias vigentes para pensar o trabalho estão obsoletas, ligadas que ainda se encontram a modos de ver o mundo típicas da sociedade industrial e incapazes de assimilar as profundas transformações contemporâneas.

O paradigma do trabalho assalariado há muito se encontra, com efeito, em erosão face a novas configurações, entre subordinação e autonomia, que marcam o nosso tempo, muitas delas já assumidas, de resto, pelo Direito.

De tanto se ocuparem a debater o emprego muitos se esqueceram frequentemente de pensar o Trabalho, tanto quanto de tentar perceber as dinâmicas presentes no mercado atual de trabalho. Isto tudo para dizer que o Trabalho digno ou decente, nos novos tempos, há-de ser antropologicamente mais “amigo” de quem trabalha e, sem perder de vista os valores que, designadamente o artigo 12o da nossa Constituição consagra, terá de ser visto à luz de novas realidades, incontornáveis, deixando para trás um certo encarniçamento à volta de conceitos e categorias do passado, como a de emprego assalariado.

Partilhar